A SAGA DO TAMANDUÁ ARMANDINHO

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Rede de apoio e afeto se mobiliza para salvar a vida de Armandinho

O cheiro de vegetação queimada ainda é forte. 

Apesar da chuva fraca que amenizou o calor e dissipou a fumaça, o ar ainda está impregnado de fuligem e os campos cobertos por troncos queimados, carvão e cinzas. O trabalho é de reconstrução, um recomeço. Desde que o incêndio foi apagado no Refúgio Ecológico Caiman, a 236 km de Campo Grande, iniciou-se um imenso esforço para suplementar de alimentos a fauna que sobreviveu às chamas. 

As equipes estão disponibilizando frutas, verduras, ovos e legumes em 15 pontos da propriedade, que abriga em seus mais de 53 mil hectares, refúgios para muitas espécies ameaçadas no Pantanal. Entre elas, o tamanduá-bandeira.

Essa dinâmica de busca ativa por animais feridos é uma corrida contra o tempo. Encontrar os bichos, capturá-los e dar o atendimento necessário.  Foi montado um ambulatório na casa cedida para as equipes do Instituto Tamanduá na Caiman. Os profissionais da fazenda e pesquisadores do Onçafari são aliados nesta busca pelos sobreviventes e no seu tratamento.

Armandinho, como foi batizado, foi encontrado uma semana depois do fim dos incêndios. Ele estava deitado, exausto, imóvel. Prostrado e entregue à própria sorte. Estava sem condições de continuar buscando abrigo… 

Um funcionário da Caiman o achou e acionou os pesquisadores. O Instituto Tamanduá mandou uma médica veterinária fazer a captura. 

Já estava escuro e a sedação no campo durante a noite foi o primeiro passo para tentar salvar o animal. Levado para o ambulatório na fazenda, os pesquisadores constataram que as quatro patas estavam com queimaduras graves, além de vários pontos no corpo também chamuscados pelas chamas. O tamanduá, um jovem macho, estava desidratado e muito fraco. Ali mesmo foi feita a desinfecção das feridas e os primeiros curativos nas patas.

Mas com o passar das horas a também médica veterinária e presidente do instituto, Flávia Miranda, constatou que o estado de saúde do tamanduá era grave e ele precisaria ser removido para receber tratamento intensivo. Começou a primeira operação de transferência do Armandinho, da Caiman para a Fazenda Aguapé, em Aquidauana, onde está a base do projeto Órfãos do Fogo que reabilita tamanduás vítimas de incêndios e atropelamentos.

O transporte foi feito com cuidado e ao chegar no recinto de reabilitação, o animal estava enfraquecido, mal conseguia levantar. Sentia muita dor por causa das feridas profundas. “Usamos todos os recursos que temos. Pele de tilápia para cicatrização, estamos trocando os curativos a cada dois dias, aplicamos antibióticos, anti-inflamatórios”, revela Maíra.

Mas além dos cuidados com as feridas, a equipe estava diante de outro desafio: fazê-lo comer. Na natureza, os tamanduás se alimentam basicamente de cupim e formigas, mas ofertar diariamente a imensa quantidade que eles consomem é difícil. Então a equipe precisou buscar um caminho para fazer o reforço nutricional.

A veterinária destaca que os tamanduás demoram a identificar a papa e os suplementos como alimento, e nesse caso, em específico, como as patas estão queimadas, Armandinho não têm força para escavar o cupinzeiro. “O movimento com as unhas é que estimula a busca do alimento. Então nós tivemos de encontrar saídas: ofertamos ovo, papa e muito soro.”

As condições no Pantanal também dificultam o tratamento: calor intenso, manejo do animal que se estressa com gente por perto para a troca constante de curativos, aplicação de medicação. Quando chove, também não pode molhar os curativos. 

Maíra tenta nos fazer entender o drama desse animal. “Quem já queimou a mão sabe que qualquer pedaço de pele queimado é muito doloroso. Esse tamanduá queimou as quatro patas, chegando no osso, com certeza ele está sentindo muita dor e a gente tenta amenizar isso. A gente estima que ele andou na brasa logo depois que o incêndio foi apagado, e ficou uma semana vagando pela fazenda, pisando naquela terra quente já com as patas queimadas e isso agravou a situação dele.”

Necessidade de um novo deslocamento

Apesar de todos os cuidados, o quadro de saúde do Armandinho estava evoluindo lentamente e foi preciso tomar outra decisão: removê-lo do Pantanal para o Centro de Reabilitação de Animais Silvestres (CRAS), em Campo Grande, onde o Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul mantém um hospital veterinário.

“Infelizmente as queimaduras foram muito profundas. Ele está com uma fratura óssea exposta, principalmente nas patas traseiras. Ele sente muita dor, mesmo a gente aplicando medicação para aliviar, ele está prostrado. Vamos levá-lo para fazer uma cirurgia nas patas e remoção de algumas falanges expostas, isso deve acelerar a cicatrização e aumentar as chances dele voltar à natureza”, diz Flávia.

As patas traseiras são importantes na locomoção e as dianteiras, onde estão a imensas unhas, são fundamentais para o tamanduá escavar os cupinzeiros em busca de alimento. Ele não perdeu as garras, mas está com as ‘almofadas’ e os pequenos dedos queimados e agora o desafio é a reabilitação.

Na terça-feira (03/09), foi montada outra operação de transferência, desta vez com o auxílio da equipe do Grupo de Resgate Técnico Animal do Pantanal (Gretap), sob a coordenação da médica veterinária Paula Helena Santa Rita. A equipe chegou no meio da tarde ao Pantanal. 

O calor passava dos 35 graus com umidade relativa do ar em menos de 20%. E Armandinho precisava de conforto térmico para suportar as mais de 4 horas de viagem. “A gente vai dar uma umidificada do lado de fora da caixa, para reduzir a temperatura e melhorar o conforto térmico, dando melhores condições de transporte para o animal”, ressaltou a especialista.

Durante o transporte foram várias paradas na rodovia para observar se o tamanduá estava respirando e suportando mais essa remoção. 

A equipe chegou ao hospital veterinário por volta das oito horas da noite. Já estava sendo aguardada por outra médica veterinária. 

O prontuário de Armandinho, com todas as anotações de procedimentos e aplicação de medicamentos, indicando doses e frequência, foi repassado da equipe do Instituto Tamanduá para a equipe do CRAS. Uma união de forças e trabalho em conjunto que têm feito a diferença na corrida para salvar os animais vítimas dos incêndios.

Armandinho recebeu na noite que chegou, doses de sedativos, analgésicos e anti-inflamtórios. No dia seguinte os exames preliminares mostravam a gravidade das feridas. No raio-x, as veterinárias descobriram que no passado ele já tinha sofrido uma fratura em uma das pernas, e se recuperou sozinho no meio do Pantanal. Esse animal demonstrava uma imensa força de vontade para sobreviver.

Cirurgia e longa recuperação

Depois de alguns dias se fortalecendo, chegou a hora da cirurgia. Um verdadeiro mutirão foi montado no centro cirúrgico do hospital do CRAS. Dois médicos veterinários se voluntariaram. Anelise Sayuri se ofereceu para aplicar a ozonioterapia. Levou os equipamentos próprios e explicou que o tratamento ajuda na limpeza, higienização e no processo de cicatrização. “O que levaria um mês para cicatrizar, com esse procedimento podemos reduzir para 15 dias. Vim como voluntária para auxiliar o Instituto Tamanduá e ajudar os animais que estão sofrendo com as queimadas”, afirmou.

A cirurgia seria complexa e a equipe percebeu que as lesões ósseas eram bem profundas. Foi preciso retirar falanges das patas e fechar os ferimentos. Os tendões não foram afetados e isso é bom, porque não interfere na mobilidade do animal e nem no uso das garras para buscar alimentos. Mas qualquer procedimento é muito delicado.

Esta união de forças, com profissionais que não trabalham com fauna silvestre junto às equipes especializadas, têm dado condições para prestar esse atendimento de ponta.

Pantanal, refúgio do tamanduá-bandeira

Para Flávia Miranda que dedica a vida a pesquisar os Xenarthras (tamanduás, preguiças e tatus) e buscar estratégias de conservação, os impactos dos incêndios no Pantanal são catastróficos. Porque muitos animais morrem carbonizados ou em consequência dos ferimentos sem que as pessoas saibam disso porque eles sequer são encontrados. 

Poder cuidar dos tamanduás resgatados é um alento, e ver a luta do Armandinho para sobreviver é uma injeção de ânimo na equipe. O difícil é manter toda esta inciativa.

O Instituto Tamanduá vive de doações e o gasto com medicamentos, transporte, alimentação é imenso. O voluntariado e as doações recebidas proporcionaram ao Armandinho o melhor tratamento dado em hospitais veterinários.

E para que se pergunta por que tanto esforço para salvar um indivíduo, a resposta é simples: os tamanduás são animais que só ocorrem na América Latina e o Brasil tem algumas das maiores populações em vida livre. 

Essa espécie tem mais de 30 milhões de anos de genética, de evolução, para chegar onde conhecemos hoje. O Pantanal ainda é o maior refúgio desses animais, com a maior população de tamanduá-bandeira em vida livre no mundo, e ano a ano eles estão perdendo a luta para os incêndios, atropelamentos nas rodovias, envenenamento nos campos por produtos químicos usados na produção agropecuária.

Armandinho é um símbolo da resistência e da luta. E para quem ficou curioso sobre a escolha desse nome, ela é uma homenagem ao funcionário da Caiman que o encontrou no campo. 

Esse funcionário se chama Armando, e ao ver o animal caído, não saiu de perto dele até que os pesquisadores chegassem para resgatá-lo. É essa corrente de apoio e afeto pela nossa fauna e flora que faz a diferença entre proteger ou destruir o nosso Pantanal.

Contribua com o trabalho do Instituto Tamanduá

Você pode ajudar esse trabalho lindo e importantíssimo feito pela equipe de profissionais do Instituto Tamanduá. Faça uma doação pelo PIX – apoie@tamandua.org ou diretamente no site da ONG.

Vale lembrar que o tamanduá-bandeira, conhecido ainda como papa-formigas, tamanduá-açú, jurumi ou jurumim, é considerado ameaçado de extinção

(Da redação, com conteúdo de conexaoplaneta.com.br –Cláudia Gaigher – 09/9/24 – Foto> Flávia Miranda – Instituto Tamaduá)

 

A cirurgia foi longa, quase quatro horas, e agora Armandinho está em recuperação
Foto: Cláudia Gaigher