DIA DO ÍNDIO DÁ LUGAR AO DIA DOS POVOS INDÍGENAS
Pela primeira vez, Brasil celebra Dia dos Povos Indígenas, atualizando nomenclatura dos anos 1940. Para escritor Daniel Munduruku, “índio é palavra vazia; indígena é palavra cheia de significado”.
O Brasil dedica o 19 de abril aos povos originários desde os anos 1940 — a data foi criada por decreto em 1943. Mas se antes era Dia do Índio, a partir deste ano o nome foi atualizado para Dia dos Povos Indígenas.
O projeto de alteração na nomenclatura oficial da data havia sido apresentado em 2019 pela então deputada federal Joenia Wapichana, hoje presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) — antes chamada de Fundação Nacional do Índio.
Depois de aprovado no Senado, acabou vetado integralmente pelo então presidente Jair Bolsonaro. Em sessão conjunta no Congresso Nacional, os parlamentares derrubaram o veto presidencial e a lei finalmente entrou em vigor.
Tanto estudiosos do assunto como representantes de povos originários consideram a mudança positiva, pois o termo “índio” historicamente acabou assumindo um papel pejorativo.
“A palavra ‘índio’ acabou perpassando a história e foi colocada na escola como uma data a ser comemorada com um viés ideológico, como que para convencer as pessoas que não existiam mais os tais ‘índios’, que estavam extintos ou próximos da extinção. Era uma política de Estado e nas escolas se passava a figura do índio como alguém ligado ao passado ancestral do Brasil”, comenta o escritor e ativista Daniel Munduruku.
“O correto é sempre chamar o indígena pelo nome. Eu sou Munduruku, mas sou indígena de origem. Índio é uma palavra vazia de significado, indígena é uma palavra cheia de significado. Índio não significa nada, indígena significa originário”, acrescenta ele.
A data foi instituída na América Latina porque entre 14 e 24 de abril de 1940 ocorreu no México o Congresso Indigenista Interamericano. Os representantes de povos indígenas inicialmente decidiram boicotar o evento, temendo ficarem sem participação ativa. No dia 19, contudo, compareceram e passaram a integrar as discussões.
“Ali começaram os esforços para a celebrar a cultura e a história dos povos indígenas”, afirma o pedagogo Alberto Terena, ex-coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
Participaram do congresso 55 delegações oficiais. O representante brasileiro foi o médico, antropólogo e etnólogo Edgar Roquette-Pinto (1884-1954) — ele não era indígena, mas estudava povos originários na região amazônica. O evento mexicano acabou definindo medidas em defesa de indígenas e o estabelecimento do “Dia do Aborígene Americano em 19 de abril”. O Brasil foi um dos países que não aderiram inicialmente às deliberações do congresso — e a data acabaria criada por aqui apenas três mais tarde.
Outro fruto importante do evento foi a criação do Instituto Indigenista Interamericano, uma entidade que depois se tornaria órgão ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA).
“O indigenismo [desde então] vem contribuindo muito para o fortalecimento do direito e da cultura indígena, mas muitas vezes cai no contraditório, porque falar ‘índio’ é falar apenas uma categoria, e hoje somos mais de 300 povos no Brasil, mais de 200 línguas diferentes. E com diversas culturas”, diz Terena.
“Os colonizadores colocaram o nome de ‘índio’ nessas populações e virou uma alcunha, um apelido para todas as pessoas que pertenciam a povos de origem”, diz Munduruku. “Não se falava em diversidade, mas sim em uma unidade. E essa palavra unificada todas essas culturas, na figura do ‘índio’, desse ‘índio’ genérico.”
No Brasil, o termo “índio” para designar os povos originários começou a ser questionado a partir dos anos 1970, com o surgimento de forma mais sistemática de um ativismo indígena. Para o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp), o principal ponto é que a denominação, embora “usada até hoje”, causa “uma impressão errada dos povos originários, como se uma única palavra designasse um único povo, com uma só cultura e até com o mesmo tipo físico”.
“O nome ‘índio esconde centenas de nações independentes, que falavam ou ainda falam línguas diferentes, muitas delas não-intercomunicantes entre si”, ressalta ele, lembrando que estimativas demográficas indicam que quando os portugueses chegaram ao Brasil, em 1500, havia pelo menos 3 milhões de nativos, distribuídos entre mais de 1 mil etnias distintas — de acordo com o último censo, de 2010, hoje são 897 mil indígenas, de 305 etnias.
O professor Rodrigues enfatiza que o termo “indígena”, por significar “originário” ou “uma pessoa que é nativa de um local específico”, define com “mais exatidão os povos que habitam o nosso país desde antes da chegada do europeu em terras americanas”. “O termo ‘índio’, hoje, evidencia uma carga de preconceito e discriminação”, afirma.
Aquilo que os une
Embora o termo “povos indígenas” pareça ser o mais consagrado hoje em dia, ainda é possível dar um passo além. “‘‘Indígena’ tem sido usado há bastante tempo, mas considera-se mais correto dizer povos originários devido ao fato de que formam no seu conjunto a origem deste país continental”, salienta o escritor e ambientalista Kaká Werá.
Werá ressalta que dentro da diversidade de todos os povos originários, é possível determinar elementos em comum que formam, segundo ele, “uma base de princípios e visão de mundo”. “Destaco três princípios: a Terra é viva e somos filhos da Terra; a nossa ancestralidade inclui o reconhecimento de que as comunidades dos animais, das plantas e dos minerais também fazem parte de nossa matriz de origem; e cuidar da natureza é cuidar do futuro”, explica ele.