HISTÓRIA REDESCOBRE O PAPEL DE MULHERES NA INDEPENDÊNCIA

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Leopoldina, Maria Quitéria, Maria Felipa e freira Joanna Angélica são algumas das personagens de destaque. Reconhecimento da participação feminina neste episódio ganha força no ano em que se celebra o bicentenário.

A ressignificação da participação das mulheres vem sendo tratada em obras recentes, como o livro Sobreviventes e Guerreiras: Uma Breve História da Mulher no Brasil de 1500 a 2000, da historiadora e escritora Mary Del Priore, e a biografia D. Leopoldina – A história não contada: a mulher que arquitetou a Independência do Brasil, do pesquisador e escritor Paulo Rezzutti. Além disso, cada vez mais universidade brasileiras contam com projetos de pesquisa que atentam para temas correlatos, como o Grupo Nina Simone, do qual faz parte Trevelin.

A historiadora conta que é perceptível o desconhecimento quanto às “personagens femininas que participaram de um processo tão importante para a nossa história”. E isso a motivou a desenvolver o curso on-line, já que o tema a “afeta diretamente, como mulher, brasileira, historiadora e pesquisadora”.

Entre todas essas pesquisas, alguns nomes em comum acabam sendo destacados. São o da nobre Leopoldina (1797-1826), que se tornaria a primeira imperatriz do Brasil, da combatente Maria Quitéria (1792-1853), da pescadora Maria Felipa (?-1873) e da freira Joanna Angélica (1761-1822).

Contudo, pesquisadores acreditam que muitas outras mulheres estiveram envolvidas nas lutas pela independência brasileira. O sumiço de seus nomes nos relatos deste episódio é resultado justamente da lógica machista de um tempo em que a atuação delas era omitida dos registros, somado a uma historiografia que as ignorava.

Rezzuti destaca que a história, durante muitos séculos, foi escrita exclusivamente por homens. “Mesmo após as mulheres terem acesso ao estudo, a maior parte delas repetiam conceitos e ideias anteriores que partiam das premissas do pensamento patriarcal. Essas coisas levaram tempo para mudar, e a história das mulheres passou a ser contada de maneira mais sistemática e intensa recentemente.”

Del Priore acredita que outros nomes ainda vão ser descobertos. “A questão é que há pouquíssima documentação sobre mulheres nesse período. Sabe-se que algumas atuavam como espiãs e levando comida e bebida aos soldados do imperador, mas seus nomes não são conhecidos”, ressalta ela. “Os historiadores estão exumando documentos para descobrir quem foram essas figuras.”

Professora na Universidade Federal de São Paulo, a historiadora Andréa Slemian lembra que é preciso contextualizar o fenômeno dentro daquele período histórico. “O momento da independência é de ebulição política, que se deu em meio ao fim da censura régia sobre os escritos, com a proliferação de uma série de textos públicos”, afirma ela. “E vemos a participação de mulheres ou pessoas que assinavam com codinomes femininos. Até porque, nesse momento em que os valores patrióticos vêm à tona, ressaltou-se o papel das mulheres na antiguidade, desde as gregas e as romanas, na luta pelos valores de suas cidades.”

Segundo a pesquisadora, quando esses valores são “recuperados pela imprensa”, há um incentivo ao “engajamento das mulheres na luta pela Independência”.

AS CONSIDERADAS PRINCIPAIS

Dos nomes consagrados, todas estiveram ligadas diretamente a episódios da luta pela independência. A freira Joanna Angélica, assassinada em fevereiro de 1822, era a responsável pelo Convento da Lapa, em Salvador. “Foi a primeira mulher vítima do processo de Independência do Brasil”, pontua Rezzutti.

Na ocasião, soldados portugueses queriam invadir o claustro religioso feminino em busca de munição e acreditando que ali estariam escondidos os contrários ao comando militar português. Ela enfrentou, bloqueando a entrada da casa. E foi morta com um golpe de baioneta.

Maria Quitéria, por sua vez, travestiu-se de homem para integrar as tropas brasileiras contra as portuguesas, nas batalhas ocorridas na Bahia em setembro de 1822. “Mesmo depois de ter sua verdadeira identidade revelada pelo pai, seu comandante não a dispensou, entre outras coisas porque ela atirava muito melhor que muitos outros recrutas”, acrescenta Rezzutti.

Já Maria Felipa era uma negra líder comunitária, pobre e iletrada, que vivia na Ilha de Itaparica, também na Bahia. Ela teria engajado outras mulheres da ilha para lutar contra os portugueses. “Naquele contexto, elas atuavam em grupos, mas não se sabe hoje o nome delas. Muitas dessas histórias permanecem e ganham força a partir de uma tradição oral, e são de muita relevância para entendermos que outras narrativas, marginalizadas até aqui, também foram decisivas na Independência do Brasil”, frisa Trevelin.

“Conta-se que Felipa pedia às mulheres bonitas da ilha para que passeassem pela praia para, assim, atrair os soldados portugueses. Ela se aproveitava da aproximação dos barcos para incendiá-los”, diz Del Priore.

Embora tardios, alguns reconhecimentos públicos vêm aparecendo, com essas mulheres emprestando nomes a logradouros e sendo alvo de homenagens. Professora da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, a jurista Eneida Obage de Britto Taquary lembra que Joanna Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa tiveram seus nomes inscritos no chamado Livro de Heróis e Heroínas da Pátria em 26 de julho de 2018, mediante lei federal.

LEOPOLDINA

A participação da primeira mulher do então príncipe regente do Brasil — que ser tornaria o imperador após a Independência — no processo histórico tem sido revisitada intensamente nos últimos anos. É praticamente unanimidade o reconhecimento de seu papel como artífice da Independência, já suas ideias foram registradas em cartas.

Por outro lado, esse discurso acabou fazendo nascer um boato: o de que ela teria assinado um decreto de independência. Para o biógrafo Paulo Rezzutti, isso é “fake news histórica”.

“Leopoldina participou de todo o processo, desde todas as questões que levaram ao Dia do Fico, do qual ela foi uma das principais articuladoras, até a sua regência, no lugar do marido, durante a qual ela enviou cartas para ele em São Paulo aconselhando-o a romper definitivamente com Portugal”, ressalta ele, sobre os antecedentes do Sete de Setembro.

Ele conta que quando Pedro partiu para São Paulo, em agosto de 1822, em viagem, Leopoldina ficou como princesa regente. “Mas não com plenos poderes, como podemos ver no decreto de sua nomeação”, ressalta. “Ela não podia deliberar nada sem a concordância do marido. “

No entanto, ela presidiu o conselho de Estado convocado no Palácio de São Cristóvão a 2 de setembro de 1822, para discutir as notícias vindas de Portugal que pediam o retorno imediato do restante da família real que havia ficado no Brasil para a Europa”, acrescenta. “Os despachos e as cartas produzidos durante essa reunião […] instigaram dom Pedro para que ele fizesse logo a Independência, antes que fosse tarde. “

Daí para dizerem que ela teria assinado um decreto de independência, foi um pulo. “É um boato, e apenas isso”, contextualiza Rezzutti. “Primeiro que o Brasil não tem uma declaração de Independência, como os Estados Unidos; segundo que a ata do Conselho de Estado de 2 de setembro presidido por Leopoldina nem menciona a questão da independência, a ata é publica, pode ser consultada online no site do governo federal. Mas nada disso diminui o envolvimento de Leopoldina em todo o processo, só não há uma assinatura dela em nada mostrando que teria sido ela e não dom Pedro quem decidiu a independência.”

OUTRAS MULHERES

Aos poucos, outras participações femininas também tem sido descobertas e melhor relatadas. Em suas pesquisas, a historiadora Trevelin deparou-se, por exemplo, com relatos das chamadas “mulheres de Saubara”. No município baiano, mulheres de uma irmandade chamada Caretas do Mingau teriam lutado diretamente contra os portugueses.

“A história mais popular, e que ganhou força na região, é que essas mulheres se vestiam de branco e saíam às ruas para assustar os portugueses, que fugiam achando que elas eram almas penadas. E assim elas conseguiam levar comidas e armamentos para seus filhos e maridos que lutavam contra as tropas, o que justificava as panelas de mingau na cabeça”, relata ela.

Contudo, Trevelin acredita que a organização teria sido anterior às lutas e elas já realizavam um cortejo tradicional com as panelas de mingau na cabeça para enaltecer a importância do alimento, base da alimentação local daqueles tempos.

“Também existem grupos, como o das Senhoras Bahianas, que peticionaram a Leopoldina em agradecimento a dom Pedro ter ficado no Brasil e reconhecendo a importância dela no processo, ou ainda o das Senhoras Paulistas, que também se dirigiram a Leopoldina durante o processo da Independência”, acrescenta Rezzutti.

Outra que é pouco lembrada é a pintora, escritora e historiadora inglesa Maria Graham (1785-1842), ligada à família imperial brasileira porque foi responsável pela educação de uma das filhas de Pedro I e Leopoldina. ” [Ela] se destacou como a voz de uma mulher em meio a uma historiografia predominantemente masculina”, analisa Trevelin.  ” [A inglesa] escreveu um diário sobre o Brasil, onde contou como foi o processo de independência, escrevendo inclusive a respeito de Maria Quitéria. Assim, se consagrou como uma importante fonte a respeito da temática, com uma história narrada pela perspectiva feminina, incomum no período.”

(DW/Edson Veiga)