PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E OS MUITOS PROBLEMAS DA MOBILIDADE

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Decreto regulamentando normas e critérios para acessibilidade de pessoas com deficiência é de 2004, mas a lei está longe de se tornar realidade. Conheça aqui alguns dos problemas enfrentados no país.

De acordo com a regulamentação de normas e critérios para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência (Decreto 5.296, de 2004), todo o sistema nacional de transportes já deveria estar acessível desde 2014, incluindo frota de veículos, terminais rodoviários, metroviários e ferroviários. 

Mas num país pouco inclusivo, como o Brasil, a lei está longe de se tornar realidade. Para a senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP), que é tetraplégica, a isenção do IPI é uma medida compensatória pela falta de acessibilidade no transporte público. 

“Por conta da falta de acessibilidade no transporte público, utilizar um veículo é, muitas vezes, a única opção para uma pessoa com deficiência”, afirma Mara, autora do PL 1.238/2019, aprovado no Senado no início de junho. 

Em análise na Câmara, o projeto assegura à pessoa com deficiência uma nova isenção de IPI na compra de carro em caso de roubo, furto ou perda total do veículo comprado anteriormente, com a mesma isenção, em período inferior a dois anos. A legislação atual permite a isenção do IPI somente uma vez a cada dois anos.

O limite para compra de carro por pessoas com deficiência, com isenção, é muito baixo. Pessoas na condição se queixam da limitação na hora de comprar um automóvel com isenção. No caso de muitos deficientes, o carro deve ser amplo o suficiente para transportar a família e cadeira de rodas no bagageiro. Mas o preço de um veículo assim é mu9ito superior ao permitido por lei.

ACESSIBILIDADE OBRIGATÓRIA EM VÁRIOS SETORES

A senadora Mara Gabrilli, que é paraplégica, reforça que o Estatuto da Pessoa com Deficiência prevê a obrigatoriedade da acessibilidade em diversos setores, como saúde, educação, transporte, moradia, trabalho, esporte, cultura, lazer e turismo.

“Temos uma das melhores legislações do mundo nesse quesito. O que precisamos cada vez mais é trabalhar para tirá-la do papel.”

A senadora critica o caráter assistencialista de muitos legisladores e gestores públicos, que veem o portador de deficiência como incapazes, quando na verdade o que eles buscam é igualar oportunidades. Mara destaca que “trazer esse olhar mais inclusivo e progressista para a política é fundamental para trabalhar em pautas realmente transformadoras.”

Em relação ao processo de conscientização sobre a importância dos direitos das pessoas com deficiência, Mara afirma que não adianta apenas aplicar multas e criar leis. “A sociedade se conscientiza quando entende de fato o seu papel para melhorar a vida do outro”.

CONQUISTAS

Autor do primeiro projeto que originou o estatuto, quando era deputado, em 2000, Paulo Paim (PT-RS)  ressalta as conquistas, mas lembra que ainda há um grande caminho a ser vencido no país. 

— Ao longo deste período, vários princípios de acessibilidade já começaram a ser incorporados pela sociedade. O uso de vagas exclusivas, a construção de rampas de acesso e os sistemas de transportes mais acessíveis são alguns exemplos positivos. Avançamos, não restam dúvidas, mas ainda temos muito que fazer, tanto na área de mobilidade quanto nas demais dimensões que o estatuto alcança.

 CADEIRANTES

Cadeirantes reclamam da falta de consciência e educação das pessoas sobre o seu direito à mobilidade. Uma mãe relata o que é típico em todos os dias de sua vida, ao levar seu filho à escola:

— Eu tenho que descer, eu tenho que estacionar. Estacionando, eu tiro a cadeira, a mochila, preparo meu filho e vou ao banheiro para fazer um cateterismo, porque ele não consegue urinar sozinho. Então, eu preciso estacionar.  

A professora relata que falta conscientização sobre a importância de respeitar as vagas reservadas aos deficientes.

— As pessoas não entendem, elas acham que é um privilégio, no sentido pejorativo, como se fosse um bônus. Elas não entendem que o cadeirante está sempre atrasado.

Michelline também denuncia que boa parte dos equipamentos essenciais para a locomoção dos portadores de deficiência não funciona. 

— Locais sem rampa de acesso. Banheiros localizados no segundo piso. Locais públicos em que os elevadores não funcionam.

Dificuldades assim são compartilhadas por 17,3 milhões de brasileiros. Essa é a estimativa da parcela da população que possui algum tipo de deficiência no país, de acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019. 

O número representa 8,4% do total de pessoas com mais de dois anos. O percentual de homens é de 6,9% (6,7 milhões) e o de mulheres, 9,9% (10,5 milhões).

VAGAS PARA PESSOAS COM DEFICIÊCIA

O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146, de 2015) determina que o direito ao transporte e à mobilidade seja assegurado em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. 

De acordo com o texto, em todas as áreas de estacionamento aberto ao público devem ser reservadas vagas próximas aos acessos de circulação de pedestres, devidamente sinalizadas, para veículos que transportem pessoas com deficiência. 

Mas nem sempre esse direito é respeitado, segundo o servidor público Marcos José Zufelato, que assim como a esposa, Natália Gonçalves, é cadeirante. Com a falta de transporte público acessível, os dois têm que usar o carro diariamente. E sempre se deparam com a falta de vagas. Para eles, estacionar o carro, na maioria das vezes, demanda tempo e paciência.

— Os idosos muitas vezes usam a vaga de deficiente. Pior ainda é quando uma pessoa que nem é idosa usa a vaga. Então a falta de vagas é um problema complicadíssimo no nosso dia a dia.

Marcos explica por que o espaço reservado a deficientes no estacionamento é tão importante.

—  Você precisa ter um espaço depois que abre a porta, para poder montar e desmontar a cadeira. Aquele espaço entre um carro e outro a gente sempre precisa usar. Por isso é muito complicado quando você chega em um shopping e tem uma moto parada na faixa zebrada ao lado da vaga. A faixa zebrada é justamente para ter o espaço da manobra. 

MULTA PODERÁ DOBRAR E ATÉ QUINTUPLICAR

Para garantir o cumprimento da norma e impedir que mais pessoas sejam afetadas pela falta de vagas preferenciais, tramita no Senado o PL 1.445/2022, que aumenta a multa cobrada em caso de reincidência de infração de trânsito por estacionar nas vagas reservadas às pessoas com deficiência. De acordo com o texto, a punição para infratores deve variar do dobro até o quíntuplo do valor.

A proposta, da senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), também prevê o pagamento de indenização por dano moral difuso. Atualmente, a infração é considerada gravíssima e prevê multa de R$ 293,47, além da inclusão de sete pontos na carteira de habilitação e possibilidade de reboque do carro. 

A senadora explica que a finalidade da multa é a de inibir o condutor ou proprietário de veículo para não praticar condutas proibidas.

TRANSPORTE PÚBLICO E ACESSIBILIDADE

O estatuto concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual. No entanto, mesmo quando têm acesso ao direito, muitos cadeirantes encontram barreiras que desestimulam o uso dessa categoria de mobilidade.  

O presidente da Organização Inclusiva das Pessoa com Deficiência, Silvestre Araújo, alerta que até numa cidade planejada, como Brasília, a falta de acessibilidade é generalizada.

— Nós estamos com um problema seríssimo em Brasília, os sinais sonoros estão desligados desde 2018, nos principais pontos turísticos da cidade. Temos a situação da Rodoviária do Plano Piloto, que não tem acessibilidade. Os elevadores estão quebrados, as escadas rolantes estão quebradas. Com relação às cidades satélites [regiões administrativas], hoje a mobilidade é muito reduzida porque muitos pavilhões não têm o nível para os elevadores baixarem e os cadeirantes entrarem no ônibus. No mês passado, dois cadeirantes sofreram acidentes, ao tentar entrar no ônibus.

O desafio é grande não só nas ruas. O estatuto obriga a instalação de sanitários para pessoas com deficiência em estabelecimentos públicos e privados. Mas a norma não é cumprida em boa parte do país.

— Além da rua que não é acessível, com desníveis e degraus, alguns restaurantes não têm banheiros acessíveis. Muitos restaurantes criam banheiros para deficientes e colocam trocador de bebê dentro. Não cabe uma pessoa cadeirante. Não faz sentido ter um trocador dentro do banheiro de deficiente — afirma Michelline.

ISENÇÃO DE IPI

Pessoas com deficiência física, visual, auditiva e mental — severa ou profunda — ou com transtorno do espectro autista têm direito a isenção de IPI na compra de automóveis, de acordo com a Lei 8.989, de 1995

No entanto, dados da Receita Federal mostram que de 2020 a 2021 houve queda de 52,2%, na venda de carros para pessoas com deficiência. Em 2020 108.560 veículos adaptados foram comercializados. Em 2021 foram apenas 51.651.  Se faltam carros, aumenta a demanda por por transporte público adequado.

SOLUÇÃO: FISCALIZAÇÃO, MULTAS E CONSCIENTIZAÇÃO

A solução, segundo as entidades de pessoas com deficiência, é a maior fiscalização do Poder Público para que o Estatuto da Pessoa com Deficiência seja efetivamente cumprido.

Banheiros adaptados devem ser vistoriados para ver se atendem às normas exigidas; os estabelecimentos devem ser coagidos, através de multas, a fazerem as adaptações necessárias – também no caso de idosos – e a Fiscalização de Trânsito deve ser mais ativa no que diz respeito às vagas para deficientes, que realmente são utilizadas por pessoas não-deficientes, sem o menor constrangimento.

Isso é falta de fiscalização, lembrando que, por lei, os agentes de trânsito podem vistoriar os estacionamentos de supermercados e outros estabelecimentos, para verificar se a lei está sendo cumprida.

A professora Michelline com o filho, Felipe (foto: Jefferson Rudy/Agência Senado)