19 DE ABRIL: POVOS INDÍGENAS CLAMAM POR UM OLHAR ATENTO

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Apesar do cenário desolador de violência que os circunda — aliciamento, assassinato, suicídio, abuso sexual de mulheres e menores —, e muitas vezes enfrentando situações degradantes, sob fome e moléstias, a partir da invasão de suas terras e da contaminação dos rios, os indígenas se mostram capazes de resistir, aumentando sua visibilidade e valorização.

Ainda vivendo às margens dos direitos que lhes são outorgados pela Constituição, os povos indígenas clamam neste 19 de abril por um olhar atento. 

Muito mais do que uma questão de bem-estar, ter a terra homologada, a oferta singularizada de serviços de saúde e educação, assim como o respeito às suas tradições são condições mínimas para sua sobrevivência. Apesar do cenário desolador de violência que os circunda — aliciamento, assassinato, suicídio, abuso sexual de mulheres e menores —, e muitas vezes enfrentando situações degradantes, sob fome e moléstias, a partir da invasão de suas terras e da contaminação dos rios, os indígenas se mostram capazes de resistir, aumentando sua visibilidade e valorização.

Parte dessa crescente visibilidade está presente na recente escolha de mulheres e homens indígenas para órgãos do Poder Executivo que têm a função de garantir os direitos constitucionais dos povos originários. 

Inédito, o recém-criado Ministério dos Povos Indígenas pode ajudar a fazer cumprir a legislação e a desfazer o preconceito que persiste, por uma leitura errônea e distante da realidade, ainda tão comum por parte da população brasileira.

— Nós não somos o que, infelizmente, muitos livros de História ainda costumam retratar. Se, por um lado, é verdade que muitos de nós resguardam modos de vida que estão no imaginário da maioria da população brasileira, por outro, é importante saberem que nós existimos de muitas e diferentes formas. Estamos nas cidades, nas aldeias, nas florestas, exercendo os mais diversos ofícios que vocês puderem imaginar — disse a ministra Sônia Guajajara em seu discurso de posse no Ministério dos Povos Indígenas, em janeiro deste ano.

A ministra salientou que “a invisibilidade secular que impacta e impactou diretamente as políticas públicas do Estado é fruto do racismo, da desigualdade e de uma democracia de baixa representatividade, que provocou uma intensa invisibilidade institucional, política e social, nos colocando na triste paisagem das sub-representações e subnotificações sociais do país”.

— São séculos de violências e violações e não é mais tolerável aceitar políticas públicas inadequadas aos corpos, às cosmologias e às compreensões indígenas sobre o uso da terra — expôs Sônia Guajajara.

 

VISIBILIDADE

Essa maior representatividade — também evidenciada pela escolha de Joenia Wapichana para a presidência da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e do advogado Ricardo Weibe Tapeba para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) — é reconhecida como uma nova época para os povos originários.

Para o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Danilo Silva Guimarães, tem havido nos últimos anos um grande movimento de valorização dos povos originários, numa espécie de resposta a tantos ataques aos seus direitos.

Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora no campo da Etnologia Indígena, Lucia Helena Rangel também confirma que há “um fundamento do menosprezo” por parte da população com relação ao indígena, mas que a situação começa a ganhar novos contornos.

Resultados preliminares do Censo Demográfico 2022, recém-divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que há hoje no Brasil 1.652.876 de indígenas, número aproximadamente 84% maior do que o contabilizado no levantamento de 2010, quando eles somavam 896,9 mil pessoas (817,9 mil declaradas). Há 13 anos, os indígenas estavam divididos em 305 etnias e comunicavam-se em 274 línguas diferentes, dados ainda não atualizados e anunciados pelo atual censo.

ANTIPOLÍTICA

O uso da terra é, sem dúvida, a questão mais conflituosa entre indígenas e não-indígenas. Apesar de a Carta Magna assegurar em seu artigo 67 que a União concluiria a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição (1988), isso não ocorreu. E o descumprimento legal assevera as disputas nos campos e nas florestas.

A homologação de terras indígenas esteve estagnada nos últimos quatro anos, diante do que especialistas nomearam de “antipolítica indigenista”. Treze processos demarcatórios estão agora em fase de conclusão para serem efetivados pelo governo federal nos próximos meses em áreas das regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Sul.

Mesmo em áreas já homologadas, o desrespeito à posse indígena é algo corriqueiro. Na maior terra indígena do Brasil, a dos ianomâmis — que congrega cerca de 31 mil indígenas em aproximadamente dez milhões de hectares — a forte presença do garimpo, unida à ausência do Estado, provocou uma situação de miséria, desnutrição, doenças e abusos a que foram submetidos homens, mulheres, jovens e crianças. A gravidade do quadro ganhou holofotes, com repercussão mundial.

A crise humanitária exacerbada pela invasão e exploração ilegal da terra ianomâmi levou o Senado a instalar, em fevereiro deste ano, comissão externa temporária criada para acompanhar a situação dos ianomamis e a saída dos garimpeiros de suas terras. O colegiado terá 120 dias para concluir seu trabalho.

TRAGÉDIA ANUNCIADA

Primeira mulher indígena a comandar a Funai, a ex-deputada federal Joenia Wapichana declarou recentemente em audiência pública da comissão externa que essa é uma “tragédia humanitária anunciada”, diante da ausência efetiva do Estado.

Para a presidente da Funai, o aumento da invasão e da exploração dos recursos naturais pelos garimpeiros foi agravada ao longo dos últimos quatro anos em razão da desestruturação da assistência à saúde indígena e do abandono das políticas de proteção territorial das áreas indígenas.

— A origem disso é justamente o garimpo ilegal, a disseminação das doenças e a desnutrição, ocasionada muitas vezes de uma relação direta entre a exploração do garimpo e o aumento de casos de doenças infecciosas, gripe, pneumonia e outras infecções respiratórias que poderiam, sim, ser evitadas se houvesse uma tomada de ação e de providências quando [os abusos] foram inicialmente denunciados. 

O relatório Missão Yanomami, publicado pelo Ministério da Saúde, em janeiro deste ano, apontou que em 2020 houve registro de morte de 332 ianomâmis, com taxa de mortalidade de 10,7 para cada mil habitantes. O percentual de mortes foi 40,6% maior que em 2018, quando houve 236 óbitos. O número chegou a 249 em 2021 e a 209, entre janeiro e setembro de 2022.

Crimes ambientais

Como proposta de combate aos crimes de poluição e de exploração mineral ilegal praticados em terras de povos indígenas, o senador Jorge Kajuru (PSB-GO) apresentou o PL 344/2023. Ao alterar a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 1998), a proposta é de que essas práticas ilegais sejam penalizadas de forma qualificada quando ocorridas em terra indígena. Assim, a pena passaria de um a quatro anos de reclusão e multa para oito a 12 anos, também com multa.

De acordo com o relatório Povos indígenas e comunidades tradicionais e a governança florestal, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC), divulgado em 2021, “as taxas de desmatamento, na América Latina e no Caribe, são significativamente mais baixas em áreas indígenas e de comunidades tradicionais onde os governos reconhecem formalmente os direitos territoriais coletivos”.

No Brasil, conforme o relatório, a taxa de desmatamento dentro das florestas indígenas em que “a terra já foi assegurada” é até 2,5 vezes menor na comparação com outras áreas. Isso demonstra, segundo a FAO, que os indígenas e as comunidades tradicionais são “os melhores guardiões de suas florestas”.

Violência

As crises que afetam os povos indígenas têm sido contínuas. Em 2022, o Senado instalou comissão temporária externa sobre a criminalidade na Região Norte. À época, parte do colegiado esteve na terra indígena do Vale do Javari, território no Amazonas, onde o jornalista britânico Dom Phillips, do The Guardian, e o destacado indigenista Bruno Araújo Pereira foram assassinados.

Um dos resultados do trabalho da comissão foi a apresentação do Projeto de Lei (PL) 2.327/2022. A proposta altera a Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 1998) ao inserir os crimes cometidos em terras indígenas no rol das circunstâncias que agravam a pena.

DEMARCAÇÕES

“O ano de 2021 foi marcado pelo aprofundamento e pela dramática intensificação das violências e violações contra os povos indígenas no Brasil. O aumento de invasões e ataques contra comunidades e lideranças indígenas e o acirramento de conflitos refletiram, nos territórios, o ambiente institucional de ofensiva contra os direitos constitucionais dos povos originários”.

A afirmativa acima é do relatório Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil — dados de 2021, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que pode ter uma versão ainda pior para 2022, segundo a assessora antropológica e coordenadora da pesquisa, professora Lucia Helena Rangel.

A situação da violência no Norte não se agrava apenas com os garimpeiros, segundo a pesquisadora. A preocupação também é grande a partir da presença crescente de facções criminosas na região, operando o narcotráfico e vários outros delitos, com muito poder econômico.

— Eles descobriram que podem entrar nas terras indígenas e se esconder, esconder muamba, veículos. É claro, os indígenas não têm capacidade de controlar essa entrada. Os traficantes entram na maciota, fazem acordos com algumas pessoas, oferecem coisas. Então há traficantes, madeireiros, grileiros, garimpeiros invadindo e aliciando principalmente os jovens.

Com suas particularidades, os problemas também se repetem nas outras regiões.

— No restante do país, há tipos diferentes de problemas, mas há até mesmo invasão de terra indígena onde não tem terra. No Sul, por exemplo, as terras são mínimas, mas os caras estão lá, querendo arrendar para criar gado, o que é proibido.

O levantamento de 2021 do Cimi apontou que há no Brasil 429 terras indígenas registradas, ou seja, com demarcação concluída. Além disso, são mais 8 homologadas (aguardam registro), 73 declaradas (aguardam homologação), 44 identificadas (aguardam portaria declaratória do Ministério da Justiça), 143 a identificar (incluídas na programação da Funai), 598 sem providências (reivindicadas pela população indígena, mas ainda sem nenhuma providência administrativa) e 5 com portaria de restrição. Há ainda 67 reservadas (demarcadas como reservas indígenas) e 26 dominiais (de propriedade de comunidades indígenas).

INVASÕES

Foram registrados, em 2021, 305 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio, em 226 terras indígenas, em 22 estados. Essas ações foram marcadas, na maioria dos casos, pela “intensidade, continuidade, quantidade e imposição da força e violência contra as comunidades indígenas”.

O número já é maior que o de 2020, quando houve 263 casos de invasão registrados em 201 terras em 19 estados e três vezes pior que em 2018, quando foram contabilizados 109 desses casos.

Dados de junho de 2022, sujeitos a revisão, apontaram 176 casos de assassinatos de indígenas em 2021, com destaque para Amazonas, Mato Grosso do Sul e Roraima. Nesse universo, 29 vítimas eram mulheres, 146 homens e uma pessoa não teve o gênero identificado. A maioria (67%) tinha entre 20 e 59 anos. Os homicídios atingiram 39 jovens de até 19 anos, o que representa mais de um quinto dos casos. A agressão por meio de disparo de arma de fogo ou arma não especificada foi utilizada em 39,2% dos casos e a agressão por meio de objeto cortante ou penetrante, em 36,4% dos registros.

Também são numerosos os casos de tentativa de homicídio, homicídio culposo, lesões corporais, racismo, discriminação étnico-cultural e violências sexuais. O relatório chama atenção para o fato de “ser impossível mensurar com precisão o número de vítimas” de violência sexual entre os ianomâmis.

Desassistência

A desassistência geral aos povos indígenas está relacionada à falta de alimentos e à fome propriamente dita, de acordo com o levantamento do conselho:

Além disso, são registrados casos de desassistência no âmbito da política pública de educação escolar indígena específica e na área de saúde. Os números do Cimi apontam 125 mortes (2021) identificadas pela falta de assistência, das quais 39 estão atreladas à oferta assistencial na saúde.  

Mas há ainda que ser contabilizada a desassistência para a sobrevivência econômica. É árdua a luta de muitos povos para poderem comercializar suas produções, por exemplo.

ESPREMIDOS

A disseminação de bebida alcóolica e de outras drogas é uma realidade em algumas aldeias indígenas. Amazonas e Mato Grosso do Sul chamam atenção para as consequências dessa prática que culminam em situações preocupantes, como o registro corriqueiro de suicídios e o acirramento de conflitos internos nas aldeias. Há registro de que 148 indígenas se suicidaram no país em 2021.

O crescente uso de álcool e drogas vem sendo relacionado a situações de invasão de narcotraficantes em algumas áreas indígenas, mas estão especialmente atreladas à falta de perspectivas dos povos indígenas.

Leia matéria completa, com gráficos e todos os dados em 19 de abril: povos indígenas lutam por mais visibilidade e valorização — Senado Notícias

(Créditos: Paula Pimenta, Valter Gonçalves Jr., Ag. Senado.)