LISTAS DE LEITURA DE VESTIBULARES BUSCAM NOVAS IDENTIDADES

LISTAS DE LEITURA DE VESTIBULARES BUSCAM NOVAS IDENTIDADES
USP e Unicamp, responsáveis por dois dos principais vestibulares do país, colocarão em prática mudanças significativas em suas listas de livros obrigatórios, longe de consensos
Há algum tempo que as listas de leituras dos vestibulares têm apresentado maior versatilidade.
No entanto, um desses movimentos chama atenção: é lista válida para os exames que serão realizados entre 2026 e 2029 pela Fuvest, o processo de seleção para ingressar na Universidade de São Paulo (USP).
A partir deste ano — ou seja, para estudantes que ingressarão em 2026 — a lista de leituras do vestibular contará apenas com obras escritas por autoras mulheres.
A universidade está realizando uma série de palestras gratuitas na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (Rua da Biblioteca, 21 – São Paulo / SP), no campus da Cidade Universitária, para discutir as obras. Para participar dos eventos, é necessário inscrição através do link do perfil do Instagram e eles também terão transmissão no canal do Youtube da biblioteca.
O debate em torno do tema está longe de ser uma unanimidade, e levanta questionamentos importantes sobre a relevância social, cultural e mercadológica das listas de leitura, bem como sobre a formação do cânone literário brasileiro – além de proporcionar um impacto localizado para editoras que publicam as obras.
No final de março (25), o vestibular da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), organizado pela Comvest, também anunciou mudanças significativas nos títulos exigidos no decorrer dos próximos anos.
Uma das principais críticas realizadas à nova lista do vestibular paulistano é a ausência de autores de presença constante em relações do tipo, como Machado de Assis e Graciliano Ramos, por exemplo. Ainda em 2023, quando a Fuvest publicou em seu portal oficial as mudanças que estavam por vir, uma carta aberta assinada por 125 professores e críticos literários — muitos deles docentes da própria Universidade de São Paulo — teceu críticas à forma como a mudança na lista do vestibular foi conduzida.
O documento não discorda sobre a inserção de autoras, mas sim questiona os critérios de seleção para as obras que passaram a compor a nova lista. “O critério de seleção de um único perfil de autoria tampouco guarda coerência com a inclusão, dada a exclusão de escritores negros, a representação LGBTQIAPN+ e a dos povos indígenas. Em outro traço, a produção letrada do Brasil colônia desapareceu do rol de obras, num provável descarte do que se acredita ‘antigo’.”
A carta reforça que existe uma contradição na proposta, uma vez que, de um total de nove autoras, apenas três são negras (uma brasileira, uma angolana e uma moçambicana) e seis, brancas (sendo uma delas portuguesa). Para Sinei Sales, professor de cursinhos preparatórios para vestibular e doutor em letras pela USP, o grande tema da nova lista da Fuvest é o feminino. Um dos claros objetivos da nova lista é justamente questionar a ideia de que existe apenas um único cânone da nossa literatura, destacar novas obras, e que não diminuem a qualidade do debate literário, de acordo com o professor. “É uma espécie de metalinguagem, não são só mulheres que escrevem, mas que questionam o lugar da mulher na sociedade. Esse é o viés que acaba bonificando a escolha dessas obras“, comenta.
Um dos livros recém adicionados às leituras é o título Canção para ninar menino grande (Pallas), lançado em 2018, escrito por Conceição Evaristo.
Cristina Fernandes Warth, da editora da Pallas, diz que a medida é, de certa forma, uma política reparatória da universidade: “Por tantos e tantos anos, a aparição de uma escritora mulher nas listas de livros para o vestibular era a exceção. Então, apesar de toda a chiadeira em alguns meios, acho muito justo que esses jovens adultos entrem em contato com literatura da mais alta qualidade, vendo o quanto essas artistas da palavra são incríveis”, diz.
O crítico literário e professor de teoria literária na Unicamp, Paulo Franchetti, discorda e acredita que as listas passam por um momento de crise de identidade. “Por acaso, incluíram um livro muito bom, que é o de Júlia Lopes de Almeida [Memórias de Martha]. Essa escritora e esse livro mereciam estar na lista do vestibular pela importância da obra da autora. Incluí-lo apenas porque se pretendia uma lista feminina, junto com obras que não têm qualidade, não o valoriza, antes o desmerece – como se fosse incluído não por ser muito bom, mas apenas por ser de autoria feminina”. Escrevendo no contexto naturalista, Almeida foi a única mulher entre os idealizadores da Academia Brasileira de Letras.
Outra autora clássica da nova lista da Fuvest é Rachel de Queiroz. No entanto, a obra selecionada para o concurso é um título menos conhecido da autora, Caminhos de pedra. Cassiano Elek Machado, diretor-editorial do Grupo Editorial Record, afirma que o livro é um dos de maior carga política de Rachel de Queiroz.
Ele cita que, quando Graciliano Ramos leu o livro, chamou a atenção para o fato de Caminhos de pedra ser “uma história de gente magra”. Com isso, ele se referia ao ambiente de fome, trabalho excessivo, perseguições, cadeia, injustiças de toda a espécie. “A escolha do livro para o maior vestibular do país possibilita que muitos milhares de estudantes entrem em contato com este lado marcante da obra de Queiroz“, diz o editor.
Em nota, a editora Todavia comentou sobre a inserção de A visão das plantas (Todavia), de Djaimilia Pereira de Almeida: “A matéria do livro estabelece um diálogo com a nossa História, como a brutalidade do processo escravocrata, a colonização, o passado que nos assombra. Diante disso, a inclusão do livro na Fuvest tem tudo para trazer ainda mais atenção a uma autora decisiva”.
Gêneros e formatos variados
No final de 2024, a editora Carambaia firmou uma parceira com a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, localizada na cidade universitária. Três dos títulos da nova lista fazem parte do acervo da Biblioteca BBM/USP, órgão da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, que preserva um acervo único sobre a história e a literatura brasileira: Opúsculo Humanitário, de Nísia Floresta; Nebulosas, de Narcisa Amália; e Memórias de Martha, de Julia Lopes de Almeida. A parceria vai colocar no mercado novas edições dos livros, com material de apoio produzido por professores e pesquisadores ligados à Universidade.
De acordo com Sinei, livros como Opúsculo humanitário, de Nísia Floresta, que pode ser acessado gratuitamente através da biblioteca digital da BBM, é um dos livros que “destoam” daquilo a que o aluno está mais habituado. Opúsculo apresenta 62 ensaios que refletem sobre a questão da educação das mulheres. Na opinião do professor de cursinho, pode ser benéfico para alunos entrar em contato com o gênero de ensaios antes de ingressarem nas universidades.
Mesmo que a intenção da Universidade enquanto instituição seja fazer com que os leitores-candidatos se preocupem com as questões e problemáticas levantadas pelas obras, a retirada da lista de escritores como Machado de Assis, por exemplo, pode não ser o melhor caminho para realizar esse questionamento, de acordo com a carta divulgada pelos professores.
“A gravidade da retirada de Machado de Assis da lista de livros da FUVEST fala por si. No contexto da medicina higienista que disseminava o ‘instinto’ de maternidade e domesticava as ações femininas com função de garantir o bem-estar da família burguesa, Machado de Assis submete à irrisão esse ‘instinto’, inventando a mulher como subjetividade marcada por desejo e sexualidade não monogâmica. Com Capitu, Machado de Assis formaliza a invisibilidade da mulher que se quis senhora de seu destino. A galeria de personagens femininas machadianas faz pensar”, afirma o documento dos especialistas.
Direitos autorais e aumento de vendas
O professor de cursinho afirma que os alunos não precisam se desesperar com a mudança completa da lista, porque, apesar das alterações de todos os títulos da lista de leituras, a atual seleção de obras testa conjuntos de habilidades e análises a que os alunos já eram submetidos em outros âmbitos.
Para Paulo Franchetti, a inserção ou não de determinados livros na lista deve passar pela discussão de direitos autorais e como os custos dos volumes podem impactar o estudante. Ele afirma que a escolha de obra com direitos vigentes representa lucro certo para alguma empresa, embora isso possa se justificar em alguns casos pela “relevância cultural da obra”. Dados disponibilizados pela BookInfo – empresa que monitora vendas em livrarias e sites no país – mostram evoluções importantes no número de exemplares vendidos de alguns dos livros que passaram a ser cobrados na lista de leituras da Fuvest.
“As obras clássicas da literatura estão disponíveis eletronicamente e em sebos. As obras de autores falecidos há mais de 70 anos podem ser divulgadas livremente e impressos por quaisquer editoras. Mas obras de autores recentes são exclusivas de alguma editora”, diz o professor da Unicamp.
Confira a lista dos vestibulares
Fuvest 2026
- Opúsculo Humanitário (1853), de Nísia Floresta
- Nebulosas (1872), de Narcisa Amália
- Memórias de Martha (1899), de Julia Lopes de Almeida
- Caminho de pedras (José Olympio), de Rachel de Queiroz
- O Cristo cigano, de Sophia de Mello Breyner Andresen
- As meninas (Companhia das Letras), de Lygia Fagundes Telles
- Balada de amor ao vento (Companhia das Letras), de Paulina Chiziane
- Canção para ninar menino grande (Pallas), de Conceição Evaristo
- A visão das plantas (Todavia), de Djaimilia Pereira de Almeida
Unicamp 2026
- Casa velha— de Machado de Assis
- Vida e morte de M.J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto
- Morangos mofados (Companhia das Letras), de Caio Fernando Abreu
- Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol
- No Seu Pescoço, de Chimamanda Ngozi Adichie
- Canções Escolhidas, de Cartola
(Da redação, com informações de PublishNews – Beatriz Sardinha – Imagem: Alguns dos autores e autoras que estarão nas próximas listas dos vestibulares | © Beatriz Sardinha / PublishNews (Renato Parada/Todavia)
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